Comentário

Não às patentes<br>sobre a biodiversidade

Miguel Viegas

Marx lembra-nos no Capital (Livro 1, capítulo 7) que «os animais e plantas geralmente considerados como produtos naturais são, nas suas formas actuais, os produtos não só do trabalho do ano passado, mas ainda de uma transformação operada durante séculos sob a supervisão e incorporação do trabalho humano».

Desta forma, os animais de quinta ou as plantas e respectivas sementes constituem ao mesmo tempo meios e objectos de trabalho, produto da venda ou capital fixo do agricultor. Contudo, o material biológico que permite a autorreplicação de animais e plantas, ainda que tenha sido objecto de melhoria ao longo dos séculos, permaneceu como um bem livre. Ou seja, o trabalho de melhoramento genético que resulta do isolamento de determinadas características da selecção e do cruzamento de determinadas linhas, realizado em contexto agrícola ao longo de gerações, não foi objecto, ao longo dos tempos, de nenhum processo de apropriação ao qual se pudesse associar uma renda. Naturalmente que a este facto não será alheio a difícil delimitação de um regime de propriedade intelectual que pudesse efectivar esta apropriação.

Um dos primeiros métodos de apropriação com vista à captação da renda monopolista foi a obtenção de variedades híbridas, em particular do milho durante a Primeira Guerra Mundial. Com efeito, pela primeira vez na história, o seleccionador pode retirar uma renda de inovação sobre as sementes vendidas uma vez que o vigor híbrido perde-se depois da primeira geração. Controlando as linhas parentais e patenteando o cruzamento, os produtores de milho não terão alternativas senão comprar as sementes ao seleccionador.

Hoje, apesar de 90% dos recursos naturais estarem situados no hemisfério sul, 97% das patentes sobre estes recursos são propriedade de empresas farmacêuticas, agroalimentares ou cosméticas com sede nos países do norte. Muitas histórias emblemáticas ilustram este processo de apropriação privada do património genético da humanidade. Em Abril de 1999, Larry Proctor, dono da empresa norte-americana POD-NERS, comprou um lote de feijões no norte do México. Neste lote selecionou os feijões amarelos, cultivou-os e registou a patente com o nome de «feijões Enola», passando a exigir direitos sobre cada quilo do «seu» feijão amarelo exportado para os Estados Unidos por parte dos produtores mexicanos.

Biodiversidade no domínio público

Vêm estas linhas a propósito do facto do Instituto Europeu de Patentes (IEP) estar neste momento a conceder patentes, sobre plantas resultantes de cruzamento convencional, contrariando assim as normas internacionais, designadamente o artigo 53 (b) da Convenção Europeia de Patentes que proíbe as patentes sobre variedades de plantas e processos de criação essencialmente biológicos. Ou seja, em princípio, só são patenteáveis espécies ou processos que decorram de manipulação genética em laboratório e desde que daí advenham atributos suficientemente diferenciáveis relativamente às espécies existentes. No entanto, através da manipulação de conceitos, as grandes multinacionais que já dominam o mercado das sementes estão a conseguir tornear a legislação, garantindo assim direitos não só sobre processos ancestrais de selecção e hibridação mais igualmente sobre as espécies parentais que deixam de poder ser usadas pelos agricultores.

Convenhamos que isto não acontece por acaso. Com efeito, o Instituto Europeu de Patentes constitui tudo menos uma estrutura independente. Não existe nenhum escrutínio por parte de nenhuma entidade democrática e muito menos um controle judicial. O seu orçamento é financiado através das taxas que cobra sobre os registos de patentes. As duas ONG com assento no conselho de administração são, imaginem, a Businesseurope, representante do grande patronato europeu, e o Instituto dos Profissionais Representados no European Patent Office, que reúne os milhares de juristas e outros consultores e outros «espertos» na matéria e que aconselham as grandes empresas no domínio dos direitos de propriedade. Ou seja, tal como ele está constituído, o Instituto Europeu de Patentes está em total comunhão com os interesses das grandes multinacionais.

O processo em curso de privatização dos recursos genéticos da humanidade atinge proporções alarmantes. As principais empresas multinacionais de sementes como a Monsanto, a Dupont ou a Syngenta concentram na sua posse direitos sobre as sementes mais importantes para a alimentação humana, com todas as consequências que isto acarreta junto de produtores e consumidores. Em breve, e não havendo uma rotura com este modelo, serão estas empresas a determinar o que deve ser cultivado e a que preço. O Parlamento Europeu aprovou algumas tímidas recomendações que se revelaram totalmente inócuas perante este domínio. Pela nossa parte, esta é mais uma frente de luta contra o modelo capitalista que demonstra a sua natureza predadora a antissocial. A biodiversidade deve permanecer no domínio público e só a sociedade socialista está em condições de o garantir.




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